dura na queda

céu
3 min readJan 21, 2022

chico conta: “lembrei agora de uma história do meu último disco. eu estava com ele quase pronto e fiquei cismado com uma música, achando que alguma coisa estava errada, que eu não iria conseguir cantar. o disco já estava com o prazo estourado e no limite do número de músicas. mesmo assim eu tirei essa e compus outra. aquela ficou guardada, pra ser retomada um dia, aquela coisa. a letra repetia um pouquinho uma letra de uma música minha antiga, chamada ela desatinou. era um ‘ela desatinou 2’. aí, olha que engraçado: eu estava em londres fazendo um show e encontrei elza soares. quando ela me encontrava, cantava [imita] “elzaaaa desatinooou…” ela fazia essa graça, e tal… algum tempo depois, chega aqui uma produtora que queria fazer um musical sobre a vida da elza soares. sentou aqui mesmo, onde a gente está, e me pediu uma música pro show. eu disse pra ela que eu não tinha música, que eu tinha terminado um show, que não ia dar tempo de compor… aí de repente eu lembrei: “peraí, eu já fiz essa música pra elza, sem saber!” eu tirei ela do meu disco porque não era pra eu cantar, era pra elza cantar. e ela gravou. o engraçado é que o titulo da música era dura na queda, e a elza tinha acabado de despencar do palco… parecia realmente feita pra ela, e foi.”

tem dias que nada cura a dor no peito da gente. esses dias eu pensei na possibilidade de parar. existem montanhas difíceis de serem escaladas dentro do que sou. uma sensibilidade absurda para o mundo e as coisas. sinto tanto. tanto. estou me exaurindo ao escalar essa montanha. a montanha que é maior que um edifício de 80 andares. maior que os arranha-céus de hong kong. a maioria das vezes me sinto escalando sem nenhum equipamento de proteção individual. sonho com o dia em que ela se liquefizera diante dos meus olhos. anseio. espero. penso em elza soares.

queria que meu coração estivesse aqui, mas ele está mudo e magoado. sofrendo calado todas as dores de todas as feridas que fizeram nele. parece que nunca vão se curar, sabe? coloquei um band-aid de pinguins. tenho passado merthiolate. tá escrito no rótulo que não arde, mas é mentira. arde sim, e muito. tá deteriorado e sinto que nunca vai se curar. que vai ser sempre uma chaga aberta. hoje uma amiga disse “seus escritos me salvaram várias vezes”. choro agora ao lembrar. preciso continuar por quem me ama. preciso continuar escalando essa e outras montanhas por essas pessoas, entende? sei que a vontade de desistir é grande. sei que o barquinho tá furado, mas eu preciso continuar remando por essa gente toda. preciso ser dura na queda.

acho que meu coração queria tá dentro do mar. dizem que a água salgada do mar cura qualquer ferida. até mesmo aquelas feitas na alma. eu acredito. nessa vida eu acredito em tanta coisa. em signos, em oração, em bondade, delicadeza, afeto, gente boa. acredito na esperança. sabia que o último pedido de fernando pessoa foi para que lhe alcançassem os óculos? sabia que elza disse que sentiu que iria morrer, 40 minutos depois fechou os olhos para sempre? ainda não sei qual seria o meu. sabe o que tem dentro do meu coração? mágoas. muita mágoa. acho que isso impede que se cure. queria perdoar e seguir. por que não consigo?

ontem elza se foi, mas gostaria que ela soubesse que ela deixou uma parte dela em mim. ela disse uma vez que “o mundo é grande demais para não sermos quem a gente é”. anotei para nunca esquecer. elza me deixou a coragem de ser quem sou. tem uma parte da música que o chico fez para ela que diz “a dor não presta, felicidade, sim” e elza cantava com a potência da voz do milênio. fico pensando se dentro do peito de elza existiam mágoas. acho que não. ela é grande demais para isso. queria eu ser dura na queda.

Lara

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