vó,
comecei a ler um livro de receitas hoje. a personagem principal escreve cartas junto de receitas escondidas para a sua bisa, em papel manteiga, a senhora acredita nisso? me deu vontade de escrever pra senhora também. lembrei da casa antiga, do fogão a lenha, dos bolinhos de chuva molinho por dentro. quando a senhora subia a escadinha para encher a moega de palha de café pra manter o fogo sempre aceso. pra manter a casa sempre quentinha. sinto tanta falta daquela casa, vó. da menina que eu era nela. senti saudade de ser menina hoje. logo eu que media minha altura naquele espelho colado na parede da cozinha, lembra? eu estava sempre ansiosa pra conseguir altura suficiente pra me enxergar nele. a senhora sempre falava que eu estava tão grande que quase não aguenta me pegar no colo mais e era sempre acompanhado de um “vem aqui minha filha, deixa eu te pegar no colo porque eu tô quase não te aguentando mais”. o bom de tudo isso, é que a senhora me pega no colo até hoje. sinto falta do seu colo, vó.
ontem ri o dia todo do áudio que a senhora me mandou reclamando da minha foto maquiada. pediu a que eu estava sorrindo. a senhora sempre teve as suas formas delicadas de demonstrar amor. lembro que a senhora me ensinou que é possível ser abraçada com um copo de café com leite quentinho. acho que eu nunca te disse que o copo de leite quentinho me salvaram muitas vezes nos primeiros anos longe de casa. longe do seu colo. o café com leite quente segue me salvando. lembra de quando eu ligava nos finais de período pedindo para senhora orar porque estava muito difícil? a gente sempre orava juntinhas. a gente ainda ora, né?
tem momentos que eu penso que a saudade vai arrancar um pedaço do corpo, mas visto aquele casaco azul que a senhora me deu e coloco logo o café com leite no fogo. o casaco me abraça e o leite com café quentinho me acolhe. quase sinto seu cheiro, vó. odeio pensar que estou perdendo tempo de vida da senhora estando longe. a senhora sabe que é minha pessoa favorita no mundo, né? faço questão de dizer isso para todas as pessoas do meu mundo, “a vovó é minha pessoa favorita e acho que todo mundo deveria conhecer ela”. tô tristinha hoje. não falei nada porque não quero te preocupar. lembra quando eu te disse que estava perdida? então, acho que ainda não encontrei a direção certa. tá chovendo tanto na bahia, vó. hoje eu chorei vendo as famílias desabrigadas, as cidades, as histórias, as esquinas, as escolas, as hortas, tudo destruído, vó. chorei tanto. jair não se importa, mas disso a gente já sabia. como é possível existir pessoas que não olhem para o outro com afeto, vó? eu não consigo entender e juro que tenho tentado muito entender. e a senhora sabe que eu sempre preferir os balanços, que nunca gostei de uma personalidade forte e rígida. mas eu continuo a não entender algumas coisas ainda. eu queria saber em que momento a gente se convenceu em que o sofrimento de outro ser humano não é nosso também? queria ter um coração menos sensível. hoje eu desejei isso, a senhora acredita?
vou dormir daqui a pouco. vou orar pela nossa gente. para que chova manso. para que não faça frio onde tem pessoas sem abrigo. vou orar para as feridas cicatrizarem. para terra se acalmar. vou orar pelas gentes de outras gentes, vó. ora também. te amo muito e tô que não me aguento de saudades. assim, no plural.
com amor,
lara, sua neta preferida
